O NASCIMENTO DE UM EXÉRCITO POPULAR: A GUERRA DO PARAGUAI

À sombra dessa guerra, nada pode livrar-nos de que aquela imensa escravatura do Brasil dê o grito de sua divina e humanamente legítima liberdade; e tenha lugar uma guerra interna, como no Haiti de negros contra brancos, que sempre tem ameaçado o Brasil, e desapareça dele a escassíssima e diminuta parte branca que há.
(Despacho de Caxias ao Imperador, de 18 de novembro de 1867).

Primeira lição prática para arianizar o império: a guerra do Paraguai

Onze anos depois do fim do tráfico (1853, efetivamente), o império vai enfrentar o seu maior trauma histórico. Vítima da sua incompetência administrativa, das fortes contradições internas e da cupidez do império britânico, o império vai fazer uma guerra onde se afundam em crescentes dívidas e sai extenuado, acelerando o processo de desagregação política que se vai canalizar na Abolição e na República _ ou seja, no seu próprio fim.
Quando o Império resolve atacar o Uruguai e abrir o caminho para a agressão ao Paraguai, já tem um "problema racial": o negro já não chega mais da África e alimenta as províncias do sul pelo tráfico interno, desestabilizando economicamente o Norte e o Nordeste, que ficam sem mão-de-obra. O número de negros, embora já não seja proporcionalmente superior ao de brancos, tem mais "peso social".
Porque já são negros crioulos, isto é, nascidos no Brasil em sua absoluta maioria. Já falam português, já tiveram um treino de mais de 250 anos sobre a sociedade brasileira e manifestam uma certa inquietação libertária. Mais forte que isso, o desenvolvimento da economia brasileira exige uma rápida modernização dos modos de produção, expondo com maior evidência seus contrastes.
As pressões externas que levaram ao fim do tráfico não deixam de existir. Não há mais agressividade inglesa impondo seus navios contra os tumbeiros que abasteciam o mercado escravo brasileiro; mas há o próprio processo de desenvolvimento industrial exportador inglês, atingindo sua força máxima, com uma exigência econômica impossível de ser negada, pedindo trabalho livre, assalariado, para criar um proletariado que possa consumir sua produção. O fim da escravidão, excrescência histórica em um país como o Brasil, potencialmente estruturado para o desenvolvimento econômico através de exportação de matérias-primas cada vez mais volumosa _ segundo o clássico modelo do imperialismo inglês para os países colonizados _ , era tolhido em seu progresso justamente pela inabilidade de modernizar os modos de produção. E, com isso, restringia sua capacidade de importar os produtos industrializados da Inglaterra. Esse conflito estabelece as raízes atuais do fim da escravidão. No Brasil já existe uma elite econômica que percebe o conflito e luta para adequar-se às necessidades dos novos tempos. Uma elite econômica que tradicionalmente aprendeu a conviver e a depender do imperialismo inglês; portanto, sempre pronta a defender os interesses britânicos. O fim da escravidão é uma necessidade histórica, que será defendida por certa elite econômica e política do Império como um ato de "solidariedade humana", conseguindo a simpatia de importantes segmentos da sociedade, além do apoio internacional, especialmente de grandes parlamentares na Inglaterra.
Por isso, às portas da abolição --_ desde o começo da guerra do Paraguai à abolição passam-se apenas 24 anos _, o Império tem um problema sério a resolver: o racial: Agora, no processo de degeneração do escravismo (que a maioria dos líderes das classes dominantes não percebe estar em curso, ou o ignoram para buscar até o fim), não pode simplesmente resolver o problema do negro pendurando-o no tronco e dando-lhe algumas chibatadas ou isolando-o nas senzalas. O problema, agora que a escravidão está no fim, é a própria existência do negro como homem livre _ em um futuro que fica cada vez mais perto e assustador para uma nobreza racista, que transferiu seus preconceitos aos demais brancos _ "as idéias da classe dominante são, em todas as épocas, as idéias dominantes (...)".
Enquanto os mais lúcidos vislumbram o fim da escravidão, os mais racistas _ entre eles até os que lutam pela abolição _ enxergam que com o fim do escravismo, de um dia para outro, o Império terá metade dos seus cidadões de cor preta. Dentro da insanidade racista não, lhe corre que os negros, destituídos da escravidão e promovidos a "homens livres", terão menos força política que quando eram o centro da força de trabalho, Ocorre-lhes o horror de "um país preto". Esse processo estava germinando ou engatinhando quando aparece uma nesga de luz para embranquecer o horizonte do Império: a guerra do Paraguai.
A guerra do Paraguai _ entre várias coisas _ vai servir para matar negro. Vai ser um processo brutal de arianização do Império, diminuindo os 45% dos negros na população do Império em 1860 para 15% logo após a guerra. Enquanto a população branca cresceu 1,7 vez, a negra diminui 60%, a contar-se dos quinze anos próximos à guerra (1860/1875). Foi a primeira vez na história do Brasil que o número de negros diminuiu não apenas proporcionalmente em relação à população branca, mas também em números absolutos, comparando-os com os anos anteriores `a guerra. Em 1880, havia 1 milhão de negros no país; em 1860, 2,5 milhões; em 1872, apenas 1,5 milhão.
Isso porque para a guerra foram mandados os negros. Se o exército brasileiro fosse formado proporcionalmente por negros e brancos de acordo com a sua população, teria dois terços de brancos e um terço de escravos _ mesmo admitindo-se o escândalo dos escravos irem lutar por um Estado que os oprimia. Ao contrário porém, os observadores europeus indicam algumas vezes a terrível proporção de um branco para cada 45 soldados negros. Se essa indicação de observadores militares ingleses e alemães principalmente (e alguns franceses) pode ser exagerada, não há nenhum excesso na informação de que pelo menos oito negros substituíam um branco no Exército imperial, como aliás era tradição desde o começo do século XIX.
De forma programada ou não _ mas com o uso consciente do negro como bucha de canhão, refletindo aliás a ideologia da época _, a guerra do Paraguai serviu para arianizar o Império, fazendo cair a população negra em 57% imediatamente após a guerra.