O EXÉRCITO PARA O PARAGUAI SURGIU DA "APREENÇÃO CAPCIOSA E COERCITIVA DE HOMENS"

A formação das forças militares brasileira (não se pode falar em Exército como temos hoje, já estruturado profissionalmente) foi um arrebanhamento de negros e brancos desqualificados socialmente - muitas vezes vagabundos e desempregados - para engrossarem o pequeno núcleo que existia quando engrossou o conflito. Em 1864, o Império tinha 15 091 praças e 1 733 oficiais teoricamente prontos para a luta. Teoricamente, porque verificou-se principalmente no Rio Grande do Sul que muitos valentes soldados só existiam no papel, servindo para que os caudilhos conseguissem seus soldos da fazenda, embolsando-os naturalmente. Esses 16 824 homens dividiam-se em 275 companhias e havia ainda a marinha, com 27 navios com 1 835 homens, nos portos; mais 17 navios com 2 784 homens na bacia do Plata; portanto, 44 navios com 4 619 homens.
Uma força insuficiente em número e precariamente armada para fazer a guerra; mesmo pensando que o conflito seria uma gloriosa passeata de três meses, como considerava o presidente Mitre, da Argentina. Como se aumentou este exército? Desde o início até o fim de forma "capciosa", para usar uma expressão de Caxias, que melhor que o desfilar de números explica a formação da tropa:
"(...) V. Majestade, sobrepondo-se ao direito constitucional, havia aplainado todas as garantias que este fornecia ao povo brasileiro e havia ORDENADO A APRENÇÃO CAPCIOSA E COERCITIVA DE HOMENS, agarrando por esse meio, a pais de família, a anciões, a toda a classe de trabalhadores e artistas, e até crianças, para encarcerá-los e mandá-los a nossos exércitos (...)."
dessa maneira formou-se o exército que lutou na guerra do Paraguai, conforme a amarga crítica do despacho de 18 de novembro de 1867 de Caxias ao Imperador Pedro II. Por isso - e Caxias ainda não ilude aos negros, o que fará adiante - , o comandante-em-chefe dos exércitos imperiais diz que aconteceram rebeliões na Bahia e em Pernambuco e outras províncias, a ponto de ameaçar "muito seriamente a unidade do Império". Era uma guerra impopular, apesar dos arroubos patrióticos a princípio, quando as classes dominantes empolgaram a opinião pública - de resto uma claque em meio à maioria silenciosa de escravos - prometendo uma vitória fácil e uma conquista de glórias marciais como prêmio automático. Os primeiros meses da guerra mostraram sua verdadeira face. A dificuldade da nobreza parasita em mandar os brasileiros morrerem no Paraguai acelerou a alforria de negros, por decreto, para lutar na guerra. São comuns os jornais da época - alguns pasquins gloriosos como O Cabrião, por exemplo - a descreverem as ardilosas festas que o império mandava dar, nas praças públicas. Armava-se um coreto, distribuíam-se guloseimas e bebidas sobre um pretexto qualquer e, quando a banda tocava animando o povo, a polícia cercava o local, aprisionando os incautos e remetendo-os aos batalhões de "voluntários" para a guerra. Esses acontecimentos, freqüentes e abundantes em todo o Brasil - especialmente nas grandes cidades - forma cuidadosamente expurgados da nossa história oficial, aliás quase sempre omissa sobre a guerra do Paraguai.
O preço dos escravos, que vinham em alta desde o fim do tráfico, subiu durante a guerra e principalmente quando da formação do Exército imperial. Isso porque o governo entrou no mercado, transformando-se no maior comprador de negros do Brasil, para suprir os claros que os nobres e brancos deixavam nas forças imperiais. Além das grandes compras do governo - que primeiro foi um bom negócio e degenerou rápido para excelente negociata - , os próprios nobres substituíam seus filhos mandando em seu lugar de oito a doze escravos - tornando-se mais heróicos na medida em quem mais contribuíam com sangue negro.
O decreto n.º 3275-A, de 6 de novembro de 1866, é um dos exemplos de alforria forçadas de negros para lutarem no Paraguai. Assinado por Zacarias Gois e Vasconcelos, "com a rubrica de Sua Majestade o Imperador", autorizava "(...)" que, aos escravos da nação, que estiverem em condições de servir o exército, se dê gratuitamente liberdade para se empregarem naquele serviço (...)". Essa liberdade era fatalmente o engajamento - do qual o decreto era apenas uma formalidade legal, dos negros escravos transferidos do eito, onde deixavam o sangue nas chibatas dos feitores, para o Paraguai, onde a grande maioria deixou a vida. Perdigão Malheiro também registra o inflacionamento do preço dos escravos a partir da entrada do governo no negócio, para remetê-los a guerra.
O governo comprou milhares de negros escravos para lutar no Paraguai. Como muitos dos documentos sobre o assunto foram queimados junto aos registros que Rui Barbosa mandou pôr fogo, no Ministério da Fazenda, é problemático chegar a um número exato. Não se sabe precisamente quantos negros o governo imperial comprou ou alforriou das suas próprias senzalas, mas se sabe com segurança o número de negros que voltaram livres da guerra do Paraguai. Voltaram 20 mil negros depois de cinco anos de lutas, e morreram na guerra entre 60 e 100 mil - este número consegue burilando as estimativas mas sérias, que aliás merecem mais créditos que as estatísticas oficiais, omissas ou intencionalmente mentirosas ( e não raro desaparecidos muitos documentos da época). A defasagem entre o número de negros existentes antes da guerra, o número de mortos durante a guerra e o total de negros depois da guerra explica-se pelo aumento da mortalidade dos negros que ficaram: tiveram que arcar com mais trabalho, receberam ainda menos cuidados em um país em crise com suas atenções voltadas para o Paraguai e, por conseqüência, morreram também em grande número. Além disso, morriam ainda nas sublevações, resistindo ao arrebanhamento e vítimas de moléstias contagiosas enquanto aguardavam a viagem para o Paraguai. A viagem também matava muitos negros. A soma desses fatores e o cuidado demonstrado pelas autoridades da época em esconder as baixas e o alto índice de mortalidade explicam essa defasagem, que é corrigida pelas estatísticas populacionais, que foram realizadas sem pudores ideológicos. Durante a guerra, a taxa de natalidade, que era mínima, tornou-se praticamente nula.