O NEGRO VAI FORTALECER A DINÂMICA DEMOCRÁTICA DO EXÉRCITO EM FORMAÇÃO

Dentro da estrutura militar brasileira, o Exército foi, no tempo do Império - a unidade desprezada das forças armadas. O importante para o Império - não importando com a sua eficiência militar - era a guarda nacional, que tinha uma função política de aliança com os grandes latifundiários. O Exército portanto, embora fundamental na defesa do país, refletia na sua estrutura e no seu corpo militar o desprezo que recebia do governo. Era um Exército pobre, como a carta de Andrade Neves ao general Osório, relatando a situação em 1865 (em plena guerra com o Paraguai), destacada por Nélson Werneck Sodré (História Militar do Brasil) de um livro de Paranhos Antunes (Andrade Neves, o Vanguardeiro), demonstra: "Estamos mal; estão adoecendo muitos soldados e tem morrido já alguns, e os médicos sempre gritando que não há remédios. O médico que veio por último mostra ser muito bom e cuidadoso, o que tenho estimado. (...) Nossas cavalhadas têm morrido aos montes. Tem havido deserções (...) Os soldados estão muito nus e sem soldos. V. Excia. Nos dê remédios para esses males".
Se a situação geral das forças em guerra era esta, em 1865, é fácil imaginar como estavam os escravos, em um Exército que tinha dentro de si todas as contradições da sociedade escravista, não faltando os castigos cruéis, comuns na paz ou na guerra. Entre os vários depoimentos da época que informam sobre o recrutamento, sua política de protecionismo ou abuso e a substituição dos brancos convocados (ou seqüestrados) pelos negros, está por exemplo o de Henrique Jorge Rebelo, indignado com o que vê: "O recrutamento é o mais devastador que é possível. Quantas vezes eu mesmo tenho observado soltar-se o atrevido capadócio por exemplo, da potente senhorita? Quantas vezes, debaixo do santo manto do poder, tem-se visto prender o intrigado jovem, o único filho de uma família desgraçada? Quantas vezes, sob a pobre, mesquinha capa, hei de observar chegar-se o ricaço camponês e, pelo escondido metal que consigo traz, livrar o filho, o parente, o amigo, talvez todos, no caso de sofrer recrutamento?" Este depoimento, também citado por Werneck Sodré, é suficiente para se entender o método de formação de Exército. E verificar sempre como os negros - entravam no processo. Vagabundos e malandros, bêbados e desempregados crônicos iam para o Exército: era uma desonra. Para não ser desonrado, o cidadão que não conseguisse subornar as autoridades convocadoras - que mantiveram um razoável comércio - podia apelar para um atestado de boa conduta junto às autoridades policiais: provando que era um bom homem, que tinha boa conduta, livrava-se do Exército. O Exército era coisa de negros, malandros, ordinários... Mas foi o Exército que ganhou a guerra.
O panorama só começou a mudar justamente na guerra do Paraguai, quando a luta no exterior foi feita pelo Exército - ironicamente, foram os negros ou malandros ou vagabundos que dignificaram o Exército. Por isso, pouco representou de imediato para o negro ser alforriado e ser lançado dentro de um Exército marginal. Um Exército, aliás, acostumado a disciplinar malandros e vagabundos por métodos quase medievais, onde o negro encontrou o mesmo método de castigo para suas faltas - açoites, estaqueamento, jejum etc. Acrescido pelo fato que entra em uma força militar considerada e tratada inferiormente como "ser inferior", isto é, servindo de válvula de escape para o desabafo de mulatos e brancos oprimidos que já tem, a partir da entrada dos escravos, a quem transferir culpas e responsabilidades.
Mas o negro ainda prestaria um grande serviço ao Exército nacional: ele vai fortalecê-lo, dando número e carne para ser massacrada, reforçando sua presença no cenário político, o que vai ter influência decisiva nos acontecimentos do pós-guerra, na campanha abolicionista e na própria queda do Império: porque este Exército, formado dos deserdados do país até a guerra do Paraguai, é, por causa disso mesmo, muito mais aberto e democrático que as demais instituições brasileiras. Pode Ter em si todas as contradições do sistema escravista do sistema escravista; mas tem, além disso, a dinâmica social que lhe imprime a "ralé" que junto com os negros se vão "enobrecer" na guerra do Paraguai. Será dentro desse Exército que, mesmo timidamente, pela primeira vez vai quebrar-se a rígida linha de cor. Quando o Exército brasileiro (como veremos adiante) recusa-se a cumprir o pedido da princesa Isabel para perseguir negros, não está sendo altruísta - está sendo conseqüente, porque aprendeu que o negro é igual ao branco, lutando e morrendo lado a lado, vendo que o negro era maioria em uma guerra injusta e injustificada que sacrificou a todos.